sábado, 1 de janeiro de 2011

Entre o solo e o inferno

Colaborador Roberto Rocha

A cada dia aumentam os prejuízos causados por erros humanos e as mudanças climáticas em todo o mundo. A partir de agosto de 2010 preocuparam os incêndios em Portugal e Espanha. Na Rússia, por causa das queimadas, as exportações de trigo sofreram restrições para não prejudicar seus estoques estratégicos e o consumo interno. A fumaça cobre Moscou e as pessoas usam máscaras. E os eventos ainda continuam.

No Brasil, os prejuízos causados com os incêndios já são enormes. No próximo ano a situação pode ser mais séria ainda. A temperatura média do planeta vem aumentando, paulatinamente. Esse fato, nos leva a pensar numa umidade do ar muito baixa e mais matéria seca disponível.

É verdade que sempre tivemos variações de temperatura na história da Terra, mas elas não afetavam tantas pessoas ao mesmo tempo e nem tantas monoculturas ensolaradas e quentes. As florestas protegem a água e ajudam a manter a umidade do ar elevada, mantida através de suas sombras generosas e frias.

Muitas cosas mudaram. A população mundial era bem menor. Não tínhamos cidades-sem-fim com seus imensos blocos de concretos e ferro, encarreirados, fumegantes. E nem tantas avenidas barulhentas durante a semana: verdadeiros cemitérios aos domingos, onde ratos e baratas se arriscam a sair dos esgotos gaseificados e silenciosos, para um merecedor repasto. As noites dos fins de semana deixam muitos resíduos nutritivos e interessantes.

Não víamos tantas áreas devastadas sendo ocupadas por monoculturas intermináveis e “queimadas para limpeza” dos excessos fibrosos que atrapalham o ganho lucrativo do pó branco, o açúcar; ou do líquido energético, transparente e puro, o álcool.

Com a fumaça, os olhos ardem a nos indicar a agressividade do ambiente hostil, mas nem sempre nossas narinas, viciadas nos corriqueiros cheiros tóxicos, conseguem nos alertar, eficientemente.
Nas cidades próximas, crianças e idosos tossem e tossem, tentando arrancar as poeiras agarradas nos cílios desidratados do aparelho respiratório. O que será que estamos construindo como sinônimo de qualidade de vida ?

Se nós - tão civilizados e tecnologicamente corretos - sofremos tudo isso, imaginem as plantas e animais indefesos que convivem nesse mesmo cenário.! Quem os protege? Quem lhes oferece o oxigênio ou o alívio de suas crises asmáticas asfixiantes na dose certa?

Alguns locais do Brasil central, nessa época em que chove menos, se parecem com situações do deserto de Sahara, no norte da África, onde numa umidade entre 10% e 15% só sobrevivem os organismos altamente adaptados a essas situações extremas.

O fogo se espalha e cresce; crispa e avermelha o céu pontilhado de fagulhas e leves plumas pretas flutuantes. Atordoados e indecisos alguns animais procuram se safar como podem. Os que têm pernas compridas, correm. Os que se arrastam e pulam são mais lentos e enfim engolidos pelo inferno quente. A pequena rã vê sua pele tostar e perder a elasticidade vital e se transforma numa iguaria apreciada por outros ou numa bola preta carbonizada. Se não anoitecer logo, a secura do ar vai aumentar ainda mais. Mas o fogo parece se acender do nada, como uma mágica escaldante.

Um piolho de cobra (miriápode ou milipede) - com suas "mil" pernas - mesmo sendo tantas, não consegue progredir grande coisa. Se enrosca e se abriga inutilmente. O solo está quente demais para a sua ingênua pretensão.

Um caramujo terrestre (aruá) foge apressado procurando um abrigo onde o fogo não o alcance. Ou então, será lambido por uma língua vermelha e implacável. Morrerá em seu próprio envoltório, como um caixão natural, devidamente assado.

Poderia estar sendo servido num restaurante fino, como iguaria. Mas certamente não será temperado com alguma erva especial.

As aves de rapina cercam alguns outros seres desesperados, aproveitando-se do momento macabro para capturar uma presa fácil. Sua inteligência prodigiosa consegue enxergar e diferençar uma desgraça de uma dádiva.


Os condenados, asfixiados pela fumaça, batem nos galhos ou tropeçam aqui e ali, tentando se restabelecer, enquanto os talões ponteagudos e cortantes cravam fundo nos pulmões e fazem parar uma vida para fazer viver uma outra, mais bem armada, eficiente e eficaz. O cheiro dos cadáveres das plantas e dos animais se espalha e atrai mais predadores oportunistas.

O fogo passa e deixa um rastro de palitos pretos em seu caminho, rodeados de uma fuligem fina que o vento vai levando, aos poucos. Depois, só as brasas.

Alguns abnegados da brigada de incêndio combatem o fogo, abafados e abafando aqui e ali, sem água por perto, com parcos recursos, na tentativa de conter o gigante devastador que vai conquistando território ajudado pelo vento e a ausência da chuva redentora.

O jeito agora é esperar a estação das chuvas e aguardar o que poderá brotar naturalmente, depois de um longo sono sazonal. Se conseguir resistir ao fogo provocado pelo homem e aos incêndios naturais ajudados pelo ar seco, a biodiversidade terá alguma chance outra vez. Até que a terra se torne totalmente estéril, e nem mesmo o homem possa criar nela um novo inferno. E tudo ficará sem graça, sem cadáveres queimados, sem odores e sem predadores. Sem gado, sem capim, sem gente, sem floresta. Só a areia branca e alguns ossos esturricados, testemunhas da nossa irracionalidade e ganância, desenfreadas.

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